Alfa Omega: Serão os estudos em Relações Internacionais propagados no Brasil demasiadamente influenciados pela indústria cultural norte-americana? E como pode a disseminação de ideologias tomadas como inquestionáveis e aplicáveis universalmente ser usada como mecanismo de promoção mundial dos interesses norte-americanos?
Argemiro Procópio: Existe no Brasil uma certa parcialidade e tendenciosidade dos recentes estudos em relações internacionais, resultantes da propagação do poderio e áreas de influência norte-americana. O conteúdo de tais estudos costuma ser réplica ou cópia defasada do ensinado nas universidades dos Estados Unidos da América. Além do controle dos meios de produção, a posse e o domínio da indústria cultural são extraordinários instrumentos de poder do unilateralismo. Isso porque ademais da conquista por meio da guerra e das empresas transnacionais, a indústria cultural sabe cativar. Domina tanto no âmbito das idéias, quanto impõe sua visão de mundo ditando indiretamente o estilo de vida de dezenas e dezenas de países. Daí também as revoltas contra o tratar cultural dos EUA. Eles por onde passam colocam em xeque tradições e culturas que não as suas.
Alfa Omega: Serão as “guerras preventivas” e as ações anti-terroristas legítimas? Elas são ou não sinais de cobiça das riquezas alheias e de intervencionismo em busca de lucros, disfarçados em uma suposta missão messiânica de “exterminação do mal” e de garantia dos valores democráticos em todo o globo?
Argemiro Procópio: De forma alguma uma “guerra preventiva” pode ser considerada legítima. Primeiramente devido à dificuldade em se definir o que seria uma guerra preventiva (atacar para se defender de uma possível ameaça?) e por último na delimitação de como seria essa guerra (quem são os inimigos, a ameaça é real, quais são os alvos a ser destruídos, há um Estado responsável ou apenas uma organização terrorista, o que se deve combater, entre outra dúvidas). Logo, os objetivos de uma “guerra preventiva” podem estar além de uma pregada missão messiânica de “exterminação do mal”, escondendo naquela meta o verdadeiro objetivo que é tomar conta de rentáveis fontes de lucro. Mascarados os reais objetivos, entre eles tornar-se donos de rentáveis reservas de petróleo, como no caso do Iraque, destaca-se para a opinião pública um novo sentido para esse tipo de guerra: a (re)democratização do mundo.
Alfa Omega: Quais são os maiores paradoxos oriundos da globalização, da desordem internacional e da arquitetura do convívio entre os Estados, sob a atuação marcante da hegemonia norte-americana?
Argemiro Procópio: A sociedade internacional, em grande parte com limitado senso crítico, acostumada a observar indiferentemente um poderio militar intervencionista assumindo o papel de “polícia do mundo” e a submeter-se sem muitos questionamentos ao poder econômico do dólar – “folha de papel universalmente aceita, mas sem o lastro-ouro” –, absorve inerte as ideologias e a visão monolítica de mundo proposta pela unilateralidade. Os motivos invocados pela unilateralidade para justificar sua postura intervencionista são muitas vezes deturpações da realidade. Invoca-se a democracia quando se tem clara a discriminação de latinos e negros; declara-se defensor dos direitos humanos quem aprisiona inimigos de guerra em bases onde o direito das gentes não vigora; ignora as decisões de órgãos multilaterais como o Conselho de Segurança e presta-se à ingerência um Estado que constantemente ressalta a importância da cooperação. Por tais razões questiona-se a existência de mecanismos que podem hoje realmente garantir a segurança internacional.
Alfa Omega: Existem mecanismos que podem hoje realmente garantir a segurança internacional? A atual debilidade das Nações Unidas significa que reina nas Relações Internacionais a lei do mais forte? Pode-se afirmar que, da forma como se encontra hoje organizada, a sociedade internacional é passível de comparação com o “estado de natureza” hobbesiano?
Argemiro Procópio: Infelizmente o mundo está ameaçado pela insegurança que se mostra mais voraz e incisiva não apenas pelos destruidores atos terroristas isolados, mas também pelo crescimento do unilateralismo. A não consulta ou o desrespeito das opiniões multilaterais provoca um retorno ao estado de natureza evocado por Hobbes, onde há a disputa constante do homem contra o próprio homem. Assim, não existem mecanismos eficazes para se combater a insegurança internacional. A inoperância da Organização das Nações Unidas comprova tal fato. As decisões ou pelo menos opiniões dos diferentes países representados no Conselho de Segurança não foram ouvidas pelos Estados Unidos, que, se preocupam mais com a tentativa de possuir as reservas de petróleo do Oriente. A unilateralidade nos mostra que o estado de natureza se faz presente na sociedade internacional contemporânea.
Alfa Omega: Qual é a importância de um gigante como a China no atual contexto internacional e qual sua relação com o poder unipolar?
Argemiro Procópio: Tendo sempre em vista que ali se encontra um quinto da população mundial, busca-se no seio da sociedade chinesa se não respostas precisas, ao menos visões diferentes dos problemas que envolvem o relacionamento internacional. O modelo de desenvolvimento chinês transforma-se hoje em referência internacional. Estima-se que, mantidos os níveis atuais de crescimento, em vinte anos o PIB chinês será igual ao norte-americano. A justiça social também é princípio caro aos chineses, que em seu país evitam as desigualdades estruturais e investem muito em capital humano. Os chineses estimam sobretudo a paz, e tem posição firme em relação à defesa da soberania nacional. O respeito mútuo é condição indispensável para a política externa chinesa, que preza muito por sua cultura própria e, portanto, consegue evitar a invasão da indústria cultural norte-americana e estabelecer uma política externa própria sem subalternidade. Mais recentemente, pode-se observar que, embora de maneira discreta, a China se coloca em posição oposta ao unilateralismo dos Estados Unidos da América.
Alfa Omega: São as recentes decisões de intervenção em países do Oriente Médio com bombardeios norte-americanos “cruzadas” em busca da paz mundial ou implementação da política do “olho por olho, dente por dente”, ainda com o ressentimento dos acontecimentos do 11 de setembro de 2001?
Argemiro Procópio: Hoje a luta contra o terrorismo é motivo invocado unilateralmente pelos Estados Unidos da América para combater o dito fundamentalismo islâmico. As recentes decisões de intervenção em países do Oriente Médio foram tomadas sem o respaldo da opinião pública mundial, mesmo a mídia tendo sido amplamente favorável à posição norte-americana ao exibir repetidamente as cenas catastróficas do 11 de setembro, numa tentativa de fomentar a vingança da sociedade internacional e transformar os bombardeios norte-americanos sobre civis em “cruzadas” em busca da paz mundial. A política do “olho por olho, dente por dente” faz que as bombas sobre casas e, por certos “acidentes”, hospitais no Afeganistão sejam a resposta certa para os aviões que colidiram nas torres gêmeas e no Pentágono. Assim como para retirar o ditador iraquiano do poder ignorou-se o direito à autodeterminação de um país esmagando-o com tanques e bombas. E no cômputo final dos resultados a vida perde seu valor, forjando-se até expressão infame como a do “fogo amigo”.
Alfa Omega: Estão os Estados Unidos da América combatendo o terror com o terror? A intolerância, a debilidade do Direito Penal Internacional e a fragilidade das políticas de segurança implementadas pelas Nações Unidas fazem com que o terrorismo e o crime organizado sejam problemas sem perspectivas claras de solução?
Argemiro Procópio: Infelizmente Os Estados Unidos claramente usam o terror para combater o terror quando poderiam fazê-lo de outras formas. As grandes redes de financiamento do terrorismo passam por paraísos fiscais, redes bancárias com pouca ou nenhuma regulamentação, onde grupos terroristas lavam dinheiro muitas vezes proveniente do narcotráfico e colocam seus fundos. Todavia, estabelecer uma grande rigidez no controle desses bancos não é objetivo dos Estados Unidos da América, já que isso criaria restrições à consecução de seus interesses financeiros. A ineficiência dos mecanismos de defesa da segurança internacional realmente faz com que o terrorismo e o crime organizado sejam problemas sem perspectivas claras de solução. E não são somente os desmandos da unilateralidade que incentivam tais ações criminosas. Existem ainda tipologias diversas do terror, utilizado como instrumento de batalha em conflitos territoriais, étnicos ou religiosos em todo o globo. São também conseqüências da globalização desigual as intolerâncias e irracionalidades que levam a ações terroristas em várias localidades diferentes do Oriente Médio, como a América Latina ou a Europa.
Alfa Omega: Qual é a análise da atual conjuntura internacional que se pode tecer observando as relações internacionais contemporâneas de uma perspectiva diferente da norte-americana? Como contextualizar nesta conjuntura teorias de pensadores clássicos, como Aristóteles, passando por Hobbes e Marx, até chegar a contemporâneos como Fukuyama e Huntington?
Argemiro Procópio: Quando se aprofunda na obra dos pensadores clássicos da sociologia, da ciência política ou até da antropologia e da economia tem-se clara a visão de que suas idéias não perdem força com o passar do tempo. Analisando estas disciplinas fundamentais para uma análise consistente do campo de estudos das relações internacionais, tem-se a clara percepção que vivemos de certa forma a luta do homem contra o homem, como na visão de Hobbes; a luta de classes, como previa Marx; somos colocados diante das desmedidas e incomensuráveis faces dos caminhos do homem em sociedade, como analisava Nietzsche; enfrentamos a luta constante por poder como pregava Maquiavel. A imagem criada pelos norte-americanos de defensores da paz contra o fundamentalismo islâmico leva a se pensar até em um choque de civilizações, idéia defendida por contemporâneos como Huntington. O fato é que inúmeras são as teorias aplicáveis em maior ou menor medida às temáticas notoriamente presentes na agenda internacional. Ao buscar a universalidade da paz e da justiça, é possível revelar os equívocos da monolítica interpretação da fenomenologia internacional mostrando o colapso das teorias, já que as noções clássicas de poder, conflito, segurança, sistema e cultura sofrem revisão. Tudo isso pretende provocar, analisar consistências e inconsistências de perigosa realidade: o unilateralismo das relações internacionais.
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