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Entrevista com Guilherme Nafalski, autor de UNASUL: uma perspectiva de integração política sul-americana

Entrevista concedida a Antônio do Amaral Rocha

Alfa-Omega – Poderia explicar por que a assinatura do Tratado Constitutivo da União de Nações Sul-Americanas, a Unasul, define-se como um momento novo, uma possiblidade da realização da política em uma esfera em que sua aparição costuma ser bastante rara?
Guilherme Nascimento Nafalski: A Unasul é um instrumento novo, não apenas porque é recente, surgiu a pouco tempo. A Unasul é uma organização que muda a forma, o formato, da integração. Ela é possível porque um discurso que antes não tinha voz, passa a ter, disputando o próprio conceito de integração, propondo não um conjunto de trâmites comerciais e econômicos, mas a constituição de uma de uma identidade sul-americana.
Ao surgir depois de gerida em partidos de oposição, que não tinham espaço nos governos e nos processos de integração, em contraposição a um movimento neoliberal, o discurso se fortaleceu antes de se tornar oficial. Quando há o esgarçamento do processo de integração pela via neoliberal, apresentado pela proposição da Área de Livre Comércio da Américas, a Alca, este discurso toma força e conquista espaço, ganhando governos e, juntas, em diferentes países, apresenta uma nova possibilidade de construção. Um acontecimento político.

Alfa Omega: Qual é o conceito de política que acompanha esse fato?
Guilherme Nascimento Nafalski: O livro utiliza o referencial teórico de Jacques Rancière. Em sua teoria a política é compreendida como um momento raro, em que uma voz antes sem espaço de fala, entra em cena, constituindo um dissenso entre a voz antes ouvida e a nova voz. Este é o momento político. É um momento, em que duas posições se contrapõem. No caso, com a ascensão de governos com uma constituição ideológica e práticas diferentes das então em prática, a ideia de integração é colocada no centro da disputa. O que é a integração? A integração antes compreendida trilhava um caminho em determinado sentido, mas surge outra integração, nova, no sentido inverso. Surge então a Unasul. Ela é o resultado do dissenso, do momento político. Ele compõe uma nova referência de compreensão sobre o assunto.

Alfa Omega: E qual seria o contraponto, o inverso desse conceito de política?
Guilherme Nascimento Nafalski: O contraponto, ou inverso, do conceito de política seria o conceito de polícia. O ordenamento do mundo tal como ele é, da forma que todos o compreendem é o mundo policial. Como resposta à questão anterior a política foi apresentada como um momento, e raro. Pois assim que ela ganha sua institucionalidade e funciona como regra, pautando as demais decisões, ela já toma a forma de uma instituição policial.
A política, em Rancière, se aproxima da concepção de revolução em Hannah Arendt, em que há um ato fundador que irrompe em uma série transformações. Esse processo termina com a instituição de uma nova ordem. A teoria rancieriana veria este processo revolucionário como o momento político e a nova ordem com o reestabelecimento de um novo mundo policial. No caso estudado, da Unasul, o processo que institui a organização é o processo político, em que há a disputa do modelo ou do que se compreende como integração. No momento em que ela se torna real, e o discurso em torno dela se solidifica, ela passa a operar dentro do modelo policial. Um novo modelo, já que instituído pela ruptura daquilo que se compreendia como integração, mas um modelo policial.

Alfa Omega: A assinatura de tratados do tipo que forjou a Unasul e outras como o Mercosul buscam sempre um consenso? O que há de novo na assinatura desse tratado?
Guilherme Nascimento Nafalski: A diplomacia sempre busca um texto comum que contemple a maior parte dos envolvidos. E ambas organizações operam internamente a partir da busca de consenso entre os participantes para que se tomem as decisões, sem ferir a soberania de nenhum país. Mas novamente temos que pensar no que significa o consenso e o dissenso. O consenso ali é instrumento de persuasão, proporcionando o debate em torno de qualquer matéria em pauta até seu esgotamento.
A assinatura do tratado é em si um momento dissensual com a prática integracionista anterior. Alí modifica-se o formato da integração. Mas para se construir o texto inicial e mesmo nominar a organização houve intenso trabalho diplomático. Houve momentos em que, inclusive, vislumbrou-se a possibilidade da organização não se formar, como em uma reunião de presidentes para a discussão da Comunidade Sul-Americana de Nações (nome anteriormente pensado para a organização) em que chefes de Estado não compareceram, tensionando a relação entre os países.
O consenso, ou o acordo em torno da criação da Unasul, acabou acontecendo, depois de intenso debate. E marcou o processo de modificação na compreensão da integração sul-americana.

Alfa Omega: A política externa brasileira, ao longo do tempo, é usualmente definida como independente e progressista mesmo quando praticada por governos não-democráticos. Ou a história não é bem assim? Explique este aparente paradoxo.
Guilherme Nascimento Nafalski: Há uma literatura das Relações Internacionais que apresenta o posicionamento do Brasil ora se aproximando dos EUA, ora se distanciando, em ciclos que não durariam mais do que poucos governos (em menos de uma década). O livro segue o apresentado por Moniz Bandeira que concorda com o movimento recorrente de aproximação e distanciamento, mas que aumenta o tamanho das “ondas”, ou seja, os ciclos atravessariam governos. Moniz Bandeira, inclusive, apresenta teorias bastante interessantes sobre a política externa brasileira e a relação de “amor e ódio” que triangula entre o país, a Argentina e os EUA. E este último seria o país que apresenta a maior resistência a uma liderança continental independente e à própria soberania dos países sul-americanos.
Esse entendimento sobre o lugar dos EUA e a necessidade do fortalecimento da soberania nacional não é uma pauta apenas dos governos progressistas. Estes governos ousaram, aplicando polícias como a Política Externa Independente (PEI) no governo João Goulart, a política nacionalista do Itamar Franco, com o Chanceler Celso Amorim, que continuou atuando na mesma linha quando Chanceler do governo Lula. Mas os governos autoritários, também buscaram se autonomizar. Houve, durante a ditadura, como Moniz Bandeira apresenta, episódios de grande tensão com os EUA, quase levando a ruptura diplomática. Em parte, isso se explica pelo nacionalismo dos militares que, apesar de terem sido apoiados pelos EUA no golpe, queriam um país forte e soberano. Com essa leitura é possível dizer que, de um modo geral, os governos brasileiros desde 1950 agiram, na arena internacional, de forma independente.
Mas considerar que ser independente é ser progressista não é correto. Os militares buscaram a independência, mas de forma autoritária o que se não é conservador, é reacionário. As melhores possibilidades de fortalecimento da autonomia aconteceram no período Jânio/Goulart e no governo Lula, democráticos e populares.

Alfa Omega: Normalmente as relações internacionais de um determinado país são pressupostos de seus governos, ou do governo que está no poder em um determinado momento. No caso do Brasil, parece haver uma independência maior do seu corpo diplomático que parece agir por conta própria. Isso procede? Ou nossa política externa sempre foi uma política de governo?
Guilherme Nascimento Nafalski: Acompanhando opiniões, notícias e até debates sobre política externa sempre ouvi que a diplomacia brasileira era matéria de Estado, extrapolando o governo em si. Quando comecei a pesquisar a Unasul alguns colegas me alertavam para observar bem o Itamaraty, pois a organização já deveria estar sendo gestada em algum canto do ministério. Muitos afirmavam que a política era de Estado para extrapolar os governos, que são muito curtos.
O que eu percebi durante a pesquisa é que a política externa brasileira é uma política explicitamente de governo. Não apenas pois quem determina as políticas e comanda a chancelaria seja o presidente, ou a presidenta, da República, mas porque o Estado não tem um direcionamento, um sentido próprio, sem o governo. O Ministro é indicação. Os cargos são todos de confiança. O fato de grande parte dos funcionários que operam a política externa serem funcionários de Estado não modifica esta realidade. Apenas facilita o trabalho do mandatário empossado, que conta com uma memória do trabalho realizado até aquele ponto, assim como com a expertise diplomática que, no Brasil, é excelente.
No resgate historiográfico presente no livro é notável que a cada novo governo fosse apresentado um modelo de integração diferente. Os governos pré-ditatoriais buscavam uma união econômica baseada no livre comércio, com a Alalc. O período seguinte, mais protecionista e nacionalista busca uma união visando o desenvolvimento da região, com a Aladi. O período de redemocratização volta à ideia da liberalização comercial, mas já vislumbra o processo europeu de formação de um bloco comercial e tenta se adaptar a este processo, com a criação do Mercosul. É interessante notar que o Mercosul também já teve diferentes atribuições, de acordo com os diferentes governos que passaram desde sua criação. Ele já foi mais liberal, sob o governo Collor, assim como absorveu um modelo mais político desde a última década, inclusive com a incorporação de um parlamento.
Desde a criação do Mercosul temos uma disputa pelo modelo de integração marcada pela política econômica neoliberal, que ganha força. Os EUA tentam a implantação da Área de Livre Comércio das Américas, para acabar com as barreiras comercias e de serviços. Durante o governo Itamar, Celso Amorim, contra a voracidade econômica estadunidense, apresenta a proposta da Alalc (Associação Latino-Americana de Livre Comércio) para fortalecer os países ao sul dos EUA, que sairiam fragilizados do acordo. Mas ainda na ótica do Comércio. A Associação não toma corpo. Fernando Henrique Cardoso assume o governo brasileiro com este imbróglio. Mantém as negociações com os EUA, mas de forma lenta.
Com a vitória, na América do Sul, de governos que ganharam fazendo oposição às políticas neoliberais a proposta da Alca perde força. (Perde força também pela dificuldade do presidente norte americano George W. Bush em passar um instrumento que facilitasse o Poder Executivo estadunidense de negociar acordos internacionais sem discussão no parlamento, o Fast Track). Abre-se o caminho para uma integração que se contrapõe aos modelos anteriores, a Unasul.
Pelo aqui exposto percebe-se que é o governo que pauta a política externa do país. E nem poderia ser diferente, já que o Itamaraty, como parte do Estado, deve servir ao governo e respeitar as determinações de seu mandatário, o chefe do Executivo.

Alfa Omega: No Brasil, após 2003, com a subida do Partido dos Trabalhadores ao poder mudanças substanciais aconteceram no trato da política interna. Em que medida isso acabou refletindo na política externa?
Guilherme Nascimento Nafalski: A política externa brasileira após a vitória do Lula, que assume a presidência em 2003, sofre uma mudança abrupta. A despeito do que muitos buscam apresentar, inclusive Celso Lafer, Chanceler do governo FHC que se submeteu a uma contrangedora revista para entrar nos EUA, que insistem em falar da continuidade dos governos, a política empreendida pela equipe de relações internacionais do Brasil, composta pelo Celso Amorim, como Chanceler, Samuel Pinheiro Guimarães como Secretário Geral do MRE e Marco Aurélio Garcia como assessor especial da presidência da República para relações exteriores, alterou completamente a pauta da área.
O Brasil passou a empreender uma agressiva aproximação dos países sul e latino-americanos, no intuito de fortalecer internamente um subcontinente que tinha pouco poder de negociação; amplia as relações com países longínquos, como os países árabes, a China. Estimula uma troca entre países do Sul (relação Sul-Sul), enfim, busca se descolar, e trazer neste descolamento o subcontinente sul-americano, da área de influência direta estadunidense.
As viagens e parcerias com a África se tornam constantes, assim como a presença do Brasil em diversos fóruns. O governo brasileiro, não incorporando uma crítica corrente e errônea, de que pratica um sub-imperialismo, leva, sempre que possível, opiniões de bloco. No início atua como porta-voz do Mercosul. Depois atua como Bric. Ou seja, pratica uma solidariedade estratégica diplomática que busca ampliar força do bloco e o poder de negociação.
O que havia antes era um alinhamento muito forte com apenas um país, os EUA, que emperrava toda a pauta política e comercial do país. Este Brasil subserviente não se vê mais. O melhor exemplo recente foi a articulação de países em relação à possibilidade de sanções ao Irã por parte do Conselho de Segurança da ONU. Mesmo com o CSONU aplicando as sanções, o Brasil se colocou como um interlocutor forte, longe da influência dos EUA e da Europa, mas não por isso atritando com eles. O Brasil age, hoje, de forma muito mais livre nas negociações internacionais. Isso porque soube construir uma política externa soberana, porém solidária.

Alfa Omega: Com o amadurecimento do Mercosul e a criação da Unasul pode-se dizer que tentativas americanas de tentar impingir aos países latino-americanos a assinatura do tratado da Alca foi abortado? Em outras palavras, a política externa norte-americana se deu por vencida?
Guilherme Nascimento Nafalski: Pode-se dizer que sim. A Alca hoje é passado. Foi completamente esvaziada. Importante ressaltar, como fiz em uma questão anterior, que não somente por vontade dos governos que estavam chegando ao poder, mas também por dificuldades políticas internas do governo estadunidense. Mas isso não quer dizer que os EUA tenham desistido do espaço que foi considerado seu quintal desde a doutrina Monroe. A IV frota foi reativada, o Plano Colômbia permanece ativo, a queda no preço do dólar atrapalha a política industrial brasileira e facilita uma colonização financeira. A resposta não pode ser apenas brasileira, mas sul-americana, e deve ser feita de forma coordenada e solidária. Eu acredito que veremos, com a Unasul, o caminho para nossa autonomia. Física, militar e política.


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Far far away, behind the word mountains, far from the countries Vokalia and Consonantia there live the blind texts.