Entrevista a Antônio do Amaral Rocha
Alfa Omega: O senhor poderia explicitar o conceito de soberania tratado no seu livro?
Marco Antônio Ribeiro Tura: A rigor não há um conceito propriamente dito no trabalho. Eu quis me afastar disto, pois todos têm-se ocupado precisamente de definir o que é a “soberania”. Queria, na verdade, dizer que a busca de um conceito (ideal) de soberania implicava a busca de suas noções (concretas) e tal empreendimento exige a compreensão de que o que conhecemos por “Estado soberano” é uma criação relativamente recente em termos histórico-sociais. De todo modo, soberania, em meu livro, há de ser entendida como a supremacia do poder estatal frente aos demais poderes sociais. O que importa aqui, no entanto, não é definir o que entendo por “soberania”, mas dizer que a supremacia estatal em que se traduz o poder soberano, é a tradução da supremacia social ostentada e sustentada pelas frações de classes e pelas classes em si que constituem e reconstituem esta organização política do poder social denominada “Estado”.
Alfa Omega: Em que época se dá a ideia do estado soberano?
Marco Antônio Ribeiro Tura: Para mim – e espero que para todos a partir da leitura de meu livro – o Estado soberano, a forma política assim denominada, possui uma materialidade muito específica e inconfundível com quaisquer outras manifestações. Sendo direto: a “coisa” denominada “Estado soberano” é bem posterior à “ideia” denominada “soberania”. Tal qual se apresenta para nós, o Estado soberano é criação do absolutismo e, como tal, é resultado do processo de transição do feudalismo ao capitalismo. Não significa, contudo, que o “Estado soberano” atual seja o mesmo do absolutismo. Mas em sua matriz genética as características dos elementos embrionários do período ainda são bem perceptíveis, especialmente as contradições em sua formação que se evidenciam em sua ação.
Alfa Omega: O conceito de soberania em algum momento da história da humanidade era tratado com um dom divino, doado por Deus. O senhor poderia discorrer sobre esse momento?
Marco Antônio Ribeiro Tura: A forma mais simplificada de fundamentação do poder estatal é aquela que apela para a natureza divina do soberano. Podemos classificar as doutrinas da soberania em cinco que se contêm em dois grupos. Basicamente, são doutrinas sobre o poder com fundamentação extramundana (teocráticas) e doutrinas sobre o poder com fundamentação mundana (democráticas). Vejamos que em nenhum momento disse que são doutrinas idealistas ou realistas porque, a rigor, ambas são idealizações a partir de elementos do real. O problema é bem mais complexo do que podemos imaginar de plano. Tais doutrinas traduzem o interessante processo social de instituição do controle do poder pelos dominados, ao menos em sentido político. E, por isso mesmo, são conhecidas como doutrinas autocráticas (ou teocráticas) e doutrinas democráticas da soberania. A primeira delas, a doutrina da natureza divina dos governantes. A segunda, da natureza divina da investidura dos governantes. A terceira, da natureza divina do poder em si. Como se observa, tais doutrinas compartilham a ideia de que há um poder exterior ao mundo vivido pelos homens e mulheres, inapreensível pelos sentidos comuns, e que justifica o poder, primeiro em seu título e depois em seu exercício. Vejamos que isso não mudará muito quando substituirmos a ideia de Deus, pelas ideias de Nação e de Povo, nas chamadas doutrinas democráticas da soberania popular e da soberania nacional. Afinal, são ideias sem ancoragem no real. Já se decretou a morte de Deus e o fim das Nações. Mais recentemente, com o questionamento de quem seria o Povo, fica claríssimo que, finalmente, tem-se a coragem de dizer que o Povo é um termo que demanda precisão conceitual que só pode ser dada por um processo definitório marcadamente ideológico. O Povo do liberal não é o Povo do conservador. O Povo das democracias referendárias não é o Povo das democracias plebiscitárias. O Povo do capitalismo não é o Povo do socialismo. Não sei se respondi ou se me perdi. Mas o tema é muito atraente para eu me limitar a um aspecto apenas.
Alfa Omega: Pode se entender a soberania sobre um feudo, sobre uma porção de terra, e mais amplamente a soberania sobre uma determinada região que se forma um país. O senhor poderia explicitar quando e como se estabeleceu essa visão ampliada da soberania responsável pelo surgimento das nações?
Marco Antônio Ribeiro Tura: A soberania, tal qual eu a concebo, não é sujeito nem objeto. Assim sendo, o soberano, propriamente, não existe. Assim como não há uma coisa qualificada pelo termo. O que há? Um processo de mundialização do capital que se coliga a um processo de universalização da forma política denominada Estado que, em seus termos mais adequados, trata-se do Estado territorial de base nacional. Se tomarmos, então, esta concepção de Estado com qualificadoras, haveremos de aceitar o uso da expressão para formas políticas anteriores. Por isso mesmo que o “Estado soberano” só pode ser tido como forma desenvolvida da organização do poder imposta sobre um território relativamente vasto e fundado em uma base histórico-cultural denominada “Nação”. Havemos de aceitar, então, a existência de “Estados parciais” diversos dos “Estados gerais” surgidos com o absolutismo. A rigor, portanto, não foi a ideia de soberania, ou o fato de sua constituição política, responsável pelo surgimento do “Estado territorial de base histórico-cultural nacional”, do “Estado-nação”. Segundo entendo, a soberania traduz o processo de afirmação e reafirmação de âmbitos cada vez maiores de alcance do poder. Assim sendo, o “Estado-nação” não surge com a soberania; mas o Estado amplia seu alcance, até territórios relativamente vastos com a pretensão de domínio sobre as pessoas e coisas sob o fundamento da coincidência com a “Nação”, a partir da doutrina da supremacia do poder monárquico central, a partir da doutrina da soberania política pós-feudal, portanto.
Alfa Omega: Qual é o papel que coube a Marx na discussão sobre a soberania?
Marco Antônio Ribeiro Tura: Marx não elaborou uma teoria do Estado ou sobre o Estado. Sabemos que ele deixou muitas indicações e até mesmo um esboço do que seria sua teoria do Estado. Em meu sentir, porém, é possível construir os fundamentos da teoria do Estado de Marx a partir de suas observações críticas em torno da filosofia hegeliana do Estado. A ideia de que a soberania política é expressão das lutas de classes e de frações de classes, parece-me, está bem desenvolvida por Marx. Tenhamos claro que não há uma teoria marxiana ou marxista da soberania. Para Marx esta não era a questão central. Mas, a partir dele, podemos formular teorias que expliquem a relação de poder social qualificada como tal. Marx, como em tudo, tem menos importância pelo que escreveu sobre um assunto e bem mais valor pelo que ofereceu como aporte metológico e ontológico. Assim sendo, não me preocupo, como jamais me preocupei, com o papel que coube a Marx na discussão; papel que, parece-me, não desempenhou nenhum. Não fiz e não faço história das ideias nem arqueologia de saberes. O que me importa é saber qual é o papel de Marx (do legado metodológico e ontológico de Marx) na discussão atual sobre os temas do poder e, por conseguinte, do Estado e de suas manifestações passadas, presentes e futuras. E este papel, como guia para a cognição e para a ação, é fundamental!
Alfa Omega: Não seria a soberania fruto de um ato de pilhagem, da preponderância do mais forte e mais armado sobre o mais fraco?
Marco Antônio Ribeiro Tura: Ao dizer isso você nada mais faz do que falar sobre a história humana, em especial sobre os quinhentos anos de mundialização do sistema do capital. Como o sistema é formado pelo tripé Capital, Estado, Trabalho, a soberania política é sim o processo de constituição de âmbitos mais amplos de afirmação do poder de uns em detrimento de outros, em especial dos exploradores sobre os produtores. Assim, a soberania política traduz a “soberania” econômica, o poder no Gabinete está imbricado ao poder na Fábrica. E, por falar em Economia, há tempos que deixou de ser o governo da casa (oikonomos). O que foram os empreendimentos econômicos ao longo da História senão empreendimentos a envolver o “público” e o “privado” para a rapina, para a pilhagem? Foi isto que afirmei ao longo do trabalho. A soberania é tradução, na esfera do Estado territorial de base nacional, da supremacia de certas frações de classes e de certas classes sobre outras. Mas a força aqui não é apenas a do fogo; é também a força do afago que se faz sentir. A manipulação dos dominados pelo medo e pelo agrado, no mundo vivido ou para o mundo prometido, é o substrato do poder soberano.
Alfa Omega: Qual é a legitimidade que pode ser dada a esse conceito de soberania que hoje rege o mundo? Não seria ela uma evolução e também fruto daqueles atos de pilhagem ocorridos durante as guerras no seu sentido amplo?
Marco Antônio Ribeiro Tura: Embora eu não goste de falar sobre legitimidade (e não tratei dela no trabalho), entendo sua preocupação. É interessante observar uma moda instalada nos ambientes acadêmicos e nos palcos da política nacional e internacional: a declaração da morte da soberania. Curioso. Fala-se tantas vezes na morte dos Estados nacionais e da soberania que, obviamente, percebemos que não morreram, mas suas vidas correm sério risco por parte destes acadêmicos e políticos do caos. O que há, então? Em verdade, a soberania, processo que é, pode apresentar maior ou menor profundidade. Quem questionará que os Estados centrais do sistema do capital mundializado são mais soberanos hoje do que nunca? A soberania de tais Estados chega mesmo a ser transterritorial, como o poder de tais Estados o é. É a marca do capital em seu processo de expansão pelo mundo. O capital só se expande com o Estado. Questionar, portanto, a validade do conceito de soberania serve apenas para a deslegitimação e desmobilização dos Estados periféricos do sistema. Os Estados centrais não sentem os efeitos dessa empreitada ideológica a não ser positivamente, como reforço de suas posições. Alguém terá a coragem de dizer que os Estados Unidos da América estão combalidos em suas estruturas de poder interna e externamente projetadas? Cheguei a ouvir isso de um ou outro habitante das Academias de Cristal. A bobagem é tão grande que hoje se escondem e negam o que antes afirmavam como verdades inquestionáveis. Hoje está declarada uma guerra infinita e indeterminada pelo aparato estatal estadunidense. Não importa quem seja o inimigo. Não importa onde esteja o inimigo. O que importa é que se não há inimigos eles serão construídos e a guerra permanecerá porque inscrita na lógica de expansão do sistema. A crise do sistema do capital que atualmente surgiu a partir dos jogos financeiros de europeus e estadunidenses é significativa. Ela atingiu os Estados centrais do sistema do capital, mas deu a eles motivos para a intervenção crescente de maneira a levar adiante projetos de destruição indispensáveis para a eliminação dos excedentes; sejam excedentes de capital, sejam excedentes de trabalho, sejam as personificações de ambos.
Alfa Omega: A discussão do conceito de soberania, sabemos, envolve o direito e as relações internacionais. Nesse sentido qual o interesse específico do seu trabalho para os estudiosos do assunto?
Marco Antônio Ribeiro Tura: Talvez nenhum. Não sei. Ou talvez todo o interesse. Os profissionais do Direito e das Relações Internacionais têm em comum uma preocupação com a paz. Este legado kantiano não deve ser desprezado. Marx e Engels, apenas para citar os fundadores, não o desprezaram. Não podemos deixar que o sonho permaneça após o despertar, no entanto. O sonho se torna delírio e o objetivo vira obsessão. Temos de reconhecer que o mundo vivido é cruel, é violento, é injusto, é desigual. Só assim podemos levar adiante um projeto consistente de transformação que permita superar tais dramas ou tragédias. O legado kantiano só se realiza abandonando Kant. Em meu trabalho, o discurso vai neste sentido. O Direito e as Relações Internacionais, enquanto campos do saber, mas, também e principalmente, enquanto modelos de cognição para a ação, têm de se deixar levar pelo influxo das forças do mundo vivido para que possam cumprir com suas tarefas em favor de um mundo sonhado que deixe de ser meramente sonhado.
Alfa Omega: O seu trabalho deve ser indicado para que tipo de formação desejada? Cursos de Direito, Relações Internacionais, História, Sociologia. O senhor poderia discorrer sobre estas indicações?
Marco Antônio Ribeiro Tura: Em todas estas áreas do conhecimento as questões do poder, de sua formação e transformação, são fundamentais. No Direito Constitucional e no Direito Internacional Público, a soberania constitui-se em fundamento (lógico) e em princípio (normativo). Ambos os ramos jurídicos mencionados se tornam possíveis apenas na medida em que se afirma a supremacia (soberania interna) e independência (soberania externa) dos Estados nacionais, curiosamente por razões distintas. Veja que não é possível um ordenamento constitucional se não aceitarmos a ideia de uma ordenação interna soberana, suprema politicamente. Assim como não é possível pensar em um Direito Internacional Público que não se volte a regular as relações entre entes soberanos, independentes politicamente. Além disso, a soberania é tida como princípio, como norma a ser observada, tanto nas relações políticas internas quanto nas relações políticas internacionais. Por isto e por aquilo, nos estudos de Relações Internacionais, em que o elemento jurídico é essencial, até mesmo para negar o caráter soberano dos Estados nacionais, necessário que se tenha uma certa concepção do que venha a ser a tal soberania. E isto sem conhecer o passado e o presente da formação social do capital é impossível, em meu sentir. De tal modo, este trabalho pode servir de interessante contribuição para os estudos da História (passado) da Sociologia (presente) acerca da formação social (política, econômica e ideológica) do sistema do capital. Poderia continuar discorrendo longamente sobre suas relações com outros campos do saber (Economia, Ciência Política, etc), mas acho que ficaria desagradável para o leitor.