Entrevista concedida a Antônio do Amaral Rocha
Alfa Omega: Porque se justifica estudar o jusfilósfo Edelman no Brasil?
Alessandra Devulsky Tisescu: A contemporaneidade de Edelman no pensamento crítico do direito reflete as mesmas qualidades presentes nos recursos da teoria marxiana na análise do mundo e de sua vicissitudes. De fato, o direito sempre se apresentou em atraso para a interpretação de situações que afligem a população, recorrendo sempre às teorias presentes nas diversas escolas da filosofia para ter respaldo teórico nas soluções a serem apresentados. Edelman recorre justamente ao marxismo como o seu ponto de partida teórico para compreender o direito inserido nesse mundo e de que modo ele efetivamente pode ser um instrumento de transformação de uma realidade, ou simplesmente um instrumento de manutenção do status quo.
Alfa Omega: Como se dá a aproximação das teorias filosóficas de Edelman com a realidade brasileira?
Alessandra Devulsky Tisescu: O direito no Brasil tem um histórico bastante conservador, junto de todo o aparato estatal que o acompanha, seja no poder legislativo que cria as leis, seja no próprio judiciário que estrutura os órgãos de sua aplicação. Atualmente vemos multiplicadas uma série de políticas públicas voltadas a uma tentativa de se “democratizar” o acesso à justiça, ou seja, ao menos em princípio, nos parece que haver um início de reconhecimento da elitização dos aparelhos jurídicos e, sobretudo, do distanciamento entre esse aparelho e a maior parte da população que é justamente aquela que mais demanda seu albergue. Contudo, a discussão acerca da acessibilidade da justiça pelas populações mais empobrecidas parece conter um hiato justamente sobre um ponto sobre o qual Edelman se debruçou –, o da possibilidade do próprio direito ser estruturalmente um espaço de manutenção das injustiças, de apoio para organizações privadas ou mesmo estatais continuarem a utilizar o poder econômico e político que detêm para manter a classe trabalhadora sobre o seu controle. A discussão sobre os direitos humanos no Brasil ou de acesso à justiça em uma realidade social tão repleta de desigualdades sociais deve necessariamente perpassar pelo marxismo em função do seu viés altamente crítico, o que nos leva a Edelman. Mas, certamente, a resposta de Edelman pode levar a inviabilizar o próprio arcabouço teórico de humanistas e reformadores.
Alfa Omega: Quais as indagações dos jovens estudantes de Direito que o caminho do pensamento percorrido por Edelman pode esclarecer?
Alessandra Devulsky Tisescu: O estudante de direito naturalmente questiona as teorias clássicas apresentadas pela academia acerca da razão de existir do direito e da própria figura do Estado. O naturalismo, o contratualismo e mesmo o positivismo não dão ao jovem estudante de direito explicações convincentes acerca na necessidade ou perenidade do direito como estrutura social voltada aos interesses da coletividade. Nesse aspecto, o que mais vemos é uma conformação dos estudantes ao longo dos anos de seu curso de direito fundada mais na falta de apresentação de teorias críticas do direito por aqueles que teriam a obrigação formal de fazê-la – os professores –, do que necessariamente em um convencimento lógico daquelas teorias. Edelman tem a preocupação de demonstrar teoricamente e pelo estudo de casos que o direito como produto de uma sociedade de modo de produção capitalista tem funções diferentes daquelas classicamente atribuídas a ele. Atingir o bem comum de todos ou organizar a sociedade e o convívio dos cidadãos de forma justa e equânime estão geralmente longe dos objetivos reais das estruturas jurídicas em nosso tipo de organização social. Esses flancos abertos por Edelman podem inquietar ainda mais os estudante, todavia, certamente não são ilusórios como aparentam ser as respostas dadas por aquelas escolas clássicas.
Alfa Omega: Como se definem em linhas gerais os temas desenvolvidos por Edelman?
Alessandra Devulsky Tisescu: O pensamento de Edelman está profundamente marcado pela teoria marxiana, bem como pelo pensamento do filósofo Louis Althusser, de modo que a preocupação em definir o direito como coadjuvante em um processo revolucionário parece estar presente em toda a sua obra. A importância do “corte epistemológico” presente nas obras de Marx, os estudos sobre a ideologia e seus aparelhos, o estudo sobre a figura do “sujeito” são temas recorrentes em suas obras ao mesmo tempo em que são os pilares teóricos da sua interpretação do direito. É a partir desses pilares que se torna possível traçar possíveis ligações teóricas com a obra de Eugeny Pachukanis, outro grande pensador do direito.
Alfa Omega: Explicite as relações das teorias de Edelman com a realidade da indústria cultural, especialmente aquelas relacionadas ao cinema.
Alessandra Devulsky Tisescu: O cinema para Edelman perde o seu encanto artístico e suas funções revolucionárias enquanto é absorvido pelos aparatos ideológicos do capitalismo. Ao ser integrado pelo capitalismo, aquela nova forma de expressão passa por alterações que qualquer produto destinado a comercialização deve sofrer – padronização e esterilização. Nesse aspecto, Walter Benjamin chega a conclusões parecidas, também na análise do cinema e da fotografia, assim como Adorno e Horkheimer o fizeram. O caminho percorrido é diferente para os autores da escola de Frankfurt e Edelman, uma vez que os primeiros não adentram como Edelman nas relações de trabalho entre os “operários” do cinema e seus industriais, todavia, as conclusões parecem estar bastante próximas.
Alfa Omega: Em que medida o pensamento de Althusser influenciou os estudos desenvolvidos por Edelman?
Alessandra Devulsky Tisescu: Althusser parece ser o autor mais importante para Edelman depois do próprio Karl Marx na medida em que deixa pronto para o nosso autor todo o desenho das estruturas sociais, sobretudo porque é em uma dessas estruturas em que o direito está inserido – a superestrutura.
Alfa Omega: Seria Edelman um pensador marxista de terceira via, isto é, as suas teorias partem só do que Althusser estabeleceu ou ele vai também nas fontes marxistas, nos próprios ensinamentos de Marx?
Alessandra Devulsky Tisescu: Eu não diria de terceira via porque Edelman em várias passagens vai resgatar nos textos do próprio Marx a fundamentação necessária para expor a figura do direito como instrumento ideológico de poder. Certamente Althusser tem importância para Edelman na escolha dos textos que serviram de base para essa pesquisa, especialmente nos textos editados após 1845, entretanto, é perceptível uma preocupação do autor em buscar no próprio Marx a fundamentação primeira de suas teorias sobre o direito.
Alfa Omega: A senhora poderia esclarecer o conceito de “corte epistemológico”, presente nas obras de Marx, que Edelman utiliza nos seus estudos e se isso corresponde mesmo à realidade?
Alessandra Devulsky Tisescu: O corte epistemológico proposto por Althusser na leitura dos textos de Marx funciona como a aposição necessária de um filtro na interpretação das obras de acordo com o período histórico vivido por Marx e de sua proximidade com autores bastante distantes daquilo que a teoria marxiana cunharia como “materialismo histórico” futuramente. Esse futuro está definido no período ulterior à 1845, mas não de modo a simplesmente ignorar toda a produção teórica de Marx anterior àquela data. A preocupação de fato é alertar que esses textos primeiros ainda estavam permeados de ideias mais ideológicas do que propriamente marxianas.
Alfa Omega: Explique a figura do “sujeito” presente nos estudos de Edelman.
Alessandra Devulsky Tisescu: O sujeito de direito em Edelman revela-se como uma categoria fundamental na compreensão da totalidade do fenômeno jurídico. Como o direito inicia seu processo objetal pelo próprio ente, este inicia a sua disposição de bens a partir do oferecimento da categoria mais primordial – ele oferece a si mesmo. O sujeito de direito então revela-se como uma mercadoria à disposição do mercado, portanto, sujeito às variações impostas por necessidades de grupos econômicos dos quais a maior parte da população está alijada de qualquer ato decisório.
Alfa Omega: Como o direito exposto por Edelman encara a questão da propriedade do trabalho intelectual que envolve a literatura, a fotografia e o cinema? Poderíamos incluir também as imagens das artes plásticas nesta questão?
Alessandra Devulsky Tisescu: A partir do momento em que a fotografia e a indústria cinematográfica se desenvolvem de modo a atribuir valor econômico às obras de artes criadas é que a figura do sujeito de direito, agora em termos de propriedade intelectual, surge para essas novas “mercadorias”. A reprodução da obra de arte e a sua consequente circulação como valor econômico destrói o seu potencial transformador, de maneira que o direito aparece só como mantenedor desses valores. Questões relativas à autoria que são importantes para o processo criativo da obra são esvaziadas, restando ao direito intermediar as relações que se apresentam para este como fundamentais entre os entes “criadores” – as relações contratuais.